Catarina Duncan, 2016
Uma cultura nasce da vontade de contar e da disponibilidade para ouvir. Ruídos, fofocas, contos e mitos se confundem e misturam, fundando as bases da uma identidade. A voz de um povo não é uma só, um corpo não pode falar por todos. Por isso, a escuta é necessária.
O Dicionário do Folclore Brasileiro de Luís da Câmara Cascudo é fruto de mais de quarenta anos de pesquisa. Cascudo percorreu o Brasil inteiro escutando as vozes de mulheres, crianças e homens – negros, indígenas, mestiços e brancos – para investigar e coletar as narrativas do que se chamava cultura popular. O resultado se manifesta como um exercício interminável, por ter como matéria prima uma cultura inteira, que é viva e não pode ser encerrada.
Se o estudo do folclore inclui todas as manifestações comuns na vida coletiva, uma constante atualização de suas relações se faz necessária. Pai dos Burros evoca as histórias dos violeiros, das contadoras de história, dos sertanejos e dos ribeirinhos para conviver com MCs do funk, Arrigo Barnabé, personagens de mangá japonês e antenas de satélite. Instaura-se um espaço em que viver juntos é possível: velhos tempos e novos meios convivem lado a lado.
Cascudo entendia a necessidade de repensar e reconsiderar sua pesquisa. No prefácio do livro Contos Tradicionais do Brasil (1946), escreve: “A reação amanhece, lentamente. Um dia, interessará”. O saber de um povo são produtos da alma coletiva; devem ser feitos e refeitos através do tempo. Um patrimônio milenar e contemporâneo em constante mutação. Esse mundo é feito de misturas, do que antes era e já não é, dos costumes que ficam e dos que se esquecem. As coisas não têm fim por que não têm começo.
Nossas histórias se contradizem e se complementam. São saberes e dizeres que nascem em algum lugar, mas se propagam a ponto de pertencer a todos. Crenças, mitos, personagens habitam em nós, frente a inúmeras possibilidades de se reinventar; são fruto de uma cultura em movimento, que se cruza e se atualiza. Quando acreditamos estar perto de uma definição, uma nova camada surge.
Somos o que nos foi contado. Somos nossa capacidade de contar aos outros. Somos o que construímos juntos. O que pensamos, não pensamos sozinhos. O entendimento só pode se dar pelo tempo e o tempo nos pede mudança. Como no dizer de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, “Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior.”
Catarina Duncan, curadora, 2018