Fabrício Corsaletti, 2019
1
os mortos deixam para trás
cabides bengalas guardanapos
vão embora e as coisas ficam
perdidas no mundo
o artista recolhe alguns itens
desse contêiner de lixo
que um ser humano produz
ao longo de algumas décadas
limpa recorta cola pinta expõe
vem um idiota e diz e aí cigarra
quando já devia estar careca de saber
que o artista é a formiga
2
em “A gôndola mágica”
Bruno Brum diz:
“Eis a gôndola mágica:
é idêntica a uma comum,
só que mágica.”
favor trocar gôndola por bengala
3
o artista é uma formiga mágica
4
amor é quando a coisa olhada
pede ao olho um destino
o artista deixa o olho olhando
e põe a mão na massa
todo artista conhece
a melhor ótica do seu bairro
todo artista tem em casa
vários pacotes de espaguete
5
amor e nostalgia são coisas diferentes
o amor implora por um destino
a nostalgia lamenta o fim de um destino
que ninguém garante que existiu
Teresa Berlinck
1) inventa destinos
para coisas abandonadas
2) inventa abandonos
para destinos inventados
6
os vivos procuram a sombra vegetal
a intimidade é uma sombra vegetal
a consciência é uma sombra vegetal
a memória é uma sombra vegetal
o esquecimento é uma sombra vegetal
a sombra protege
cabaninha do ego
esse pomar é afetivo
7
à esquerda o rio de toalha xadrez
à direita o rio de água de tinta
entre eles uma grande folha
de costela-de-adão aliás Monstera
deliciosa
dentro da pintura
estão todos condenados
a não morrer para sempre
8
para além da moldura caem os corpos
9
pessoas tiradas de caixas de fotografias
parentes de parentes de parentes
pessoas sem nome
íntimos desconhecidos
10
como os três tempos do romance
na piscina em luz de festa
duas senhoras e dois meninos
encarnam o tempo cronológico
sentada numa cadeira de praia
a moça de chapéu amarelo
encarna o tempo psicológico
debaixo da figueira desfolhada
pai e filho de mãos dadas
encarnam o tempo mítico
11
um lençol velho é passado
um lençol velho pintado
com tinta fresca é presente
na pintura como na música
ou o passado ainda é
ou o passado já era
12
um lençol velho passado
com ferro quente
nas noites de inverno
13
monotipias de figuras diáfanas
diáfanos fantasmas
vazados num lençol
como num poema simbolista
14
pequena oprimida
por lençóis freudianos
uma mulher te mira
do fundo da morte e da vida —
ela sabe
que sabemos
que não seremos felizes
15
em “Rito do irmão pequeno”
Mário de Andrade diz:
“Chora, irmão pequeno, chora,
Porque chegou o momento da dor.
A própria dor é uma felicidade…”
favor trocar dor por cor