Edson Luiz André de Souza, 2014
A dignidade dos vestígios. Edson Luiz André de Souza, 2014
Teresa Berlinck segue a risca a indicação de René Char: “Um poeta deve deixar vestígios da sua passagem e não provas. Só os vestígios fazem sonhar”. Este livro é como um mapa de vestígios, indicando algumas direções de um trabalho artístico que vai em busca da anotação mínima para revelar a vertigem potencial do espaço. A artista compartilha alguns espaços íntimos de seus diários de bordo. Recolhe imagens de seus pequenos cadernos onde, ao longo de muito tempo, desenha ideias, tentando fixar pensamentos no traço, na rasura, na pincelada, na palavra escrita ao lado da imagem. Na verdade seria mais exato dizer que a palavra escrita neste contexto de trabalho se faz imagem. Ela se mimetiza com os desenhos não como uma anotação a margem, mas como uma espécie de suspiro da forma que busca reter o som que vazou do espaço pictórico. Sim, vejo uma dimensão sonora nestas obras, pois há em muitos trabalhos um ruído de voz: cenas dos filmes, dos sonhos, das cenas de rua, das anotações de performances. No fundo, trata-se do ruído do próprio pensamento que busca seu espaço de existência. São mapas que se recusam a exigência de precisão. Não nos indicam a latitude e longitude exata para onde devemos navegar, mas aponta uma constelação de possibilidades que interpela o espectador. Trata-se efetivamente de uma experiência no sentido radical que indica Philippe Lacoue-Labarthe, ou seja, experiência como travessia de um perigo. Esta é a etimologia, ao pé da letra, da palavra experiência. A arte coloca em cena o risco, o corte, o rasgo, o resto, uma espécie de ferida da forma e que Teresa recupera com a delicadeza de quem recolhe o cristal quebrado depois da queda.
Vejo em alguns esboços de Teresa uma espécie de alfabeto mínimo como se pudéssemos ter acesso ao instante obscuro em que uma forma nasce. Se Teresa esboça alguns de seus desenhos na cama antes de dormir talvez pudesses também conversar com as imagens que nos apresenta neste mesmo estado, em um quase abandono da vigília. A atmosfera onírica agrega uma pausa espessa que nos ajuda a perceber o espírito de suas proposições. Estamos diante de um trabalho que nos exige tempo. Não nos iludamos com a aparente pressa do traço em muitos desenhos que apreendem o instante que passa veloz. O tempo capturado pulsa inquieto diante dos nossos olhos e o espectador imediatamente precisa convocar sua imaginação para o que irá advir na imagem seguinte. Assim, estes trabalhos são acordes que precisam ser compostos pelo espectador. Teresa, deixa o rastro no chão para àqueles que ainda guardam a sensibilidade de recolher o vestígio no escombro do esquecimento.
A anotação dos fragmentos de sonhos em um dos esboços é comovente. Embora faça parte de uma das séries do livro minha hipótese é que todo este projeto poderia ser nomeado sonhos. Talvez algo no estilo do filme de Akira Kurosawa onde os sonhos são como uma sequencia de pinturas que efetivamente convocam o espectador a ver o enredo, como quem olha uma pintura. Encontramos uma anotação de Teresa onde escreve logo após o relato de um sonho: “outro sonho”. Exatamente como faz Kurosawa, que apresenta em seu filme suas sequências de sonhos com esta marcação de intervalo, registrando na tela uma pausa escura entre os episódios onde podemos ler: “outro sonho”. Assim, todo o sonho é um fragmento deste sonho maior que é a vida, sempre insuficiente, incompleto, enigmático. Teresa nos mostra que abrir espaço para o sonho é mostrar de forma incisiva que o sonho abre sempre um espaço outro.
A artista ensaia uma espécie de classificação possível nas categorias que cria para dar conta das seções de seu livro. Exercício poético de classificar o inclassificável como se tomasse para si o desafio do escritor Georges Perec em seu livro “Pensar/Classificar” . Assim, Perec mostra as fronteira tênues das categorias que tentam organizar o mundo. Como poderíamos traçar com precisão as fronteiras entre estudo/sonhos/diários/projetos/processos? O estudo como projeto, o processo como sonho, o diário como estudo, o projeto como processo, o sonho como um diário…. e assim por diante.
Este belo livro funciona como a pequena maleta de Marcel Duchamp, uma espécie de museu particular para nossos momentos de devaneio. Ao ouvir a melodia de fundo dos objetos (Rilke) , tão profundamente registrados nos desenhos e pinturas de Teresa Berlinck, podemos recuperar, quem sabe, nosso em falta com a imaginação e voltar a fechar os olhos para ver e sonhar com o que realmente interessa.