Sobre Pai dos Burros
Catarina Duncan, 2018

Catarina Duncan, 2018

“Estamos, nesse ponto, certos ou errados, mas juntos. […] Se essa constelação inteira não se destina ao esclarecimento
do Homem através da quarta dimensão, o sonho é apenas sono, entorpecimento cultural, esplendor de erudição inútil”

Câmara Cascudo

Uma cultura nasce da vontade de contar e da disponibilidade para ouvir. Aboio, Cangaço, Exu, Figa, Ixê, Jurema e Macunaíma são alguns dos verbetes do Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo, que renascem na forma de desenhos e sons em Pai dos Burros. Crenças, mitos, personagens, eles habitam em nós frente a inúmeras possibilidades de se reinventar; são fruto de uma cultura em movimento, que se cruza e se atualiza. Quando acreditamos estar perto de uma definição, uma nova camada surge e as verdades se esvaem. “Trate de desconfiar. Tudo é e não é” – como no dizer de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas.

Com a referência icônica de Cascudo, Teresa Berlinck e Julio de Paula trazem o “folclore” de volta à superfície dos nossos dias. Os verbetes pinçados pelos artistas saem dos limites da palavra escrita para se tornar uma constelação. É um trabalho que brota das histórias contadas nas ruas, na internet, nos oráculos, nos sonhos, na música. Somos todos autores dessa criação que surge da multiplicidade – já que a realidade não é navegável por um só meio de tradução.

Cada verbete se desdobra em novas estruturas. Um burro pode ser um animal ou uma criança de costas na sala de aula. Boiúna, uma cobra grande ou uma embarcação. Banzé, uma confusão ou um personagem de desenho animado. A busca, a escolha e a associação de conteúdos, tanto no dicionário quanto na internet, opera como um jogo de dados: informa, mas também induz e confunde. Ainda que imaginemos controlar a diversidade dos saberes, nem tudo cabe. É preciso que aceitemos a realidade como um recorte. Pode um corpo falar por todos?

A voz do outro ecoa em tudo: nas crenças, nas cantigas, na televisão, no nome que você me deu, no fruto que você colheu. Somos o que nos foi contado. Somos nossa capacidade de contar aos outros. Somos o que construímos juntos. O que pensamos, não pensamos sozinhos. O entendimento só pode se dar pelo tempo, a quarta dimensão à qual Cascudo se refere. Em uma composição contínua entre passado e presente, memória e cotidiano, cria-se um imaginário comum, um mito, um folclore, uma cultura. Os elementos não são fixados. Pai dos Burros trata do que não pode ser definido, por ser vivo. Vivo e em completa mutação.