Sobre colecionadores e revolucionários
Ana Luisa Lima, 2007

“(…) um homme de lettres cujo lar era uma biblioteca que fora montada com extremo cuidado, mas de modo algum entendida como instrumento de trabalho; consistia em tesouros cujo valor, como frequentemente repetia Benjamin, era demonstrado pelo fato de que não os lera (…) Como o revolucionário, o colecionador ‘sonha com o seu caminho não só para um mundo remoto ou passado, mas ao mesmo tempo para um mundo melhor onde certamente as pessoas estão providas do que precisam como no mundo cotidiano, mas onde as coisas estão liberadas do trabalho humilhante da utilidade’ (Schriften, vol. I, p. 416). O colecionar é a redenção das coisas que complementaria a redenção do homem.”

Hannah Arendt sobre Walter Benjamin em Homens em tempos sombrios

Estou certa que, de todos nós, meu irmão mais velho foi o que soube levar, desde cedo, uma vida mais rica. Enquanto corríamos de um lado para outro atrás de uma bola ou em qualquer outra brincadeira que levasse o corpo à exaustão, meu irmão estava no aconchego do seu quarto vivendo toda sorte de aventuras. Colecionador nato, seu mundo era repleto de revistas sobre música e cinema, uma quantidade imensa de LPs (e depois vieram os CDs), fitas de videocassete (e depois os DVDs), dezenas e dezenas de pequeninos bonecos (os que me lembro eram playmobil e comandos em ação) e uma incrível seleção de HQs.

Na minha correria de criança (naquela época, até os 14 anos éramos mesmo ainda crianças), jamais entendi sua predileção pela quietude. Por trás de seus olhos verde-azuis havia existências inteiras das quais a pouquíssimas tínhamos acesso. Um dia, com minha curiosidade de irmã mais nova, entrei no seu quarto e me deparei com um mundo inacreditável. Sobre as prateleiras, ele havia criado cenas cinematográficas com seus bonecos. Pendurados por linhas de costura, os bonecos flutuavam, como que alçados violentamente pelas bombas de algodão saídas dos tanques de guerra.

Um mundo à parte, contudo, aprendi folheando seus mangás. A delicadeza dos traços daqueles austeros samurais me intrigava as entranhas. Nunca me dispus a ler “como se deve” aquelas HQs. Jamais me impus dedicar-me ao que estava escrito. Minha leitura era completamente imagética. De trás para frente ou de frente para trás, eu lia minhas próprias histórias dentro daquelas histórias.

Herdeira de uma biblioteca inteira, Teresa se viu de posse de tesouros. Livros não necessariamente para serem lidos, mas apreciados em toda sua constituição. Assim, se permitiu a liberalidade de desfazê-los de sua utilidade e imprimir-lhes a possibilidade de novos modos de leitura.

Páginas dos livros saíram de suas encadernações originais, mas conservam o charme de suas dobraduras. As cores por cima das páginas, ora são como velatura, ora são novos verbos de uma sintaxe visual muito sofisticada.

O “Livro aberto” de Teresa, poderia se chamar o livro dos livros, ou ainda, biblioteca. Porque todos os modos de leitura estão ali sugeridos e toda sorte de conteúdos podem ser ali vislumbrados. Como um convite a uma leitura impertinente, através da qual estamos livres de qualquer regra gramatical ou visual. Não há hierarquias entre substantivos e adjetivos, campos de cor ou traços. Do fim para o começo, do meio para o fim. Do modo como foi construído, o livro dos livros não impõe qualquer tipo de narrativa imperativa, muito pelo contrário, há mesmo um desejo de que seus fruidores possam ler suas histórias dentro das histórias.

Teresa alçou significantes de seus significados primeiros e generosamente os reorganizou de modo a devolver ao leitor o ato de criação originária. A cada mergulho, uma nova possibilidade de leitura. O nosso fôlego é que há de definir vírgulas e um ponto final.

Colecionadores e revolucionários, em seus mundos de quietude, me trouxeram, meu irmão e Teresa, o gosto raro do inapreensível, que não significa dizer que seja inalcançável.